sexta-feira, 25 de maio de 2012

Os avôs e as avós de nossa história


Rosana Banharoli, em sua estreia na Confraria da Poesia Informal, mexeu com a alma e o coração de todos os confrades ao publicar o poema abaixo, em homenagem a sua avó Amelia. De repente, as lembranças de muitos foram remexidas, transformando o assunto em tema para esse conjunto de poesias onde avós e avôs viram personagens principais.... Pedaços de nossas infâncias são aqui transformados em versos.

Amélia

Sustentada por vertentes de notas
Flutuo nos cheiros fugidios de velhos baús.
Hortelã capim-cidreira erva-doce melissa.
Braços estendidos a tocar o passado buscam
A clareza das respostas empoeiradas nos bolsos
De antigos casacos.
Queijo branco doce de abóbora compota de figo
Bolinho de chuva leite com groselha.
Mãos senis do outro lado,
Onde quase chego.
Piso na relva que alicerça esta passagem .
Sinto as pequenas flores que descolaram de seus vestidos.
Quero me confortar nelas.
Só alcanço o raminho de arruda de traz de sua orelha.
Chorinhos e risinhos de pés descalços guardados em seus ouvidos
De cabelos lilás e avental de plástico.
Desço os degraus esverdeados de meus devaneios e,
A música chega ao final.

Rosana Banharoli

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Vô Silvio

Todo como antes
Em ombros arqueados
: lida no café
notas no violão
passos no salão
canos tubos parafusos
macacão recomendação –
operário padrão.
Filhas do seu filho
Netas de seu primogênito
Irmãs irmãos
& toda a parentada
recebe ancorado na bengala.
Eita contador de causos!
Revolução de 32
Fardado estava lá
Com matrícula 5120
Se sindicalizou e
Com honra ao mérito
Metalúrgico se aposentou.
Seus diplomas alicerçaram
A minha construção
E na sua
Pendurei os meus e os das filhas.
Somos todas da família.
Seus olhos abertos
Oferecem ondas na formação
De tão transparentes
Vejo-as lá na imensidão.
Os meus prefiro manter fechados adormecidos
Vagueio pela arrebentação sem me molhar
Sem colidir nas rochas.
Estou protegida neste devaneio
De prazer e mistério.
À minha frente
No etéreo e no presente
Um homem que sempre fez
Sombra com o próprio chapéu:
Porto Seguro para uma nau errante.

Rosana Banharoli


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Oitocentos quilometros ao Sul
Cheiro de mato
Terra vermelha
Calor que não há onde nasci
Pé de jabuticaba
de caju
Brincadeira com os primos
Banho no tanque de lavar roupa
Banho de mangueira
Banho de rio
Churrasco
com Pirogue
Role de moto
Vento no rosto
Dona Maria
Filha de Stanislava Visboski
que veio da Polônia menina
e construiu aqui a vida
numa terra mais quente
que o sangue de seus ascendentes.
Vó que ensinou-me o valor
da honra verdadeira
não aquela imposta
mas aquela sentida
a unica honra que pode
ser aprendida.

Michelle Hernandes

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O HOMEM QUE TINHA FAZENDAS

meu avô tinha fazendas
que tinha um tio que cuidava 
Santa Fé 
Ripa 
Banhado do Cervo 
eram longe da cidade 
bem longe, na verdade 
eu vivia em Porto Alegre 
as terras em Cangussu. 
demorava pra ir
da cidade para o campo 
pra mudar de mundo 
do cimento para o verde 
levava três horas e meia 
no caminho
capões de mato 
gado 
pássaros em bando.
lembro das emas correndo
quase tanto quanto os carros 
mas isto foi antes da soja.
que a soja matou as emas 
que a gente chamava avestruz 
mesmo sabendo que não 
avestruz é africana 
só vive na savana 
a soja acabou com a ema
que tinha ovos enormes
e corria como os carros
no rumo das fazendas,
com rabos de espanador.
lá onde a luz era lampião 
porque os fios não chegavam 
cruzar o Sapato de balsa 
antes que houvesse a ponte 
era sinal de tá perto 
só mais uns tantos quilômetros 
por tanta terra batida 
por pó por barro vermelho 
por lebre cruzando a estrada 
onde a cruzeira estendida 
se aquecia de sol. 
nas noites escuras 
de vela querosene gás 
quando no campo sem postes 
lua virava holofote 
na fazenda onde o Fonseca
era capataz de tudo 
que morava com a Virgínia 
que tinha uma penca de filhos 
uns clarinhos como o Fonseca 
e uns cinco mais escurinhos 
puxando pra cor do Nena 
que era meio faz-tudo 
e um dia mudou pra cidade 
sumiu no mundo descobrindo 
que faz-tudo de fazenda 
faz nada na cidade 
faz ficar pobre doente cachaceiro
sem trabalho sem teto sem parente 
mas se a Virgínia
tinha filhos coloridos 
o Fonseca nem ligava 
não era mesmo casado 
e os filhos 
era como não fosse dele nenhum 
era como fosse tudo filho dele.
tanto é que foram todos 
mais ele, mais a Virgínia 
quando o Fonseca se foi 
por conta de umas contas de gado
parecidas com as de Jacó
quando era pastor de Labão 
mas meu tio não era sogro do Fonseca 
como Labão de Jacó
e estranhou muito a tal coisa: 
o Fonseca sempre tivera um gadinho 
mas o que a gente estranhava 
que só morria gado da fazenda 
e só nascia gado do Fonseca...
quando meu tio chamou-o às falas
o Fonseca foi embora 
levando a Virgínia 
a tropilha de crianças 
e o gado que acertaram pra não envolver a Brigada.
Santa Fé que era a sede
com cata-vento de água
com chuveiro de álcool
e geladeira de gás. 
da Ripa cuidava o Bruno
que era casado com a Iná
era filho da Oona e irmão do Helmut
que Bruno o povo chamava
porque o nome era Brunald
que teve mais a Iná
um casalzinho de filhos
primeiro o Eli André
depois a Elisa Andréa.
campo longe da cidade 
em tempo sem internet 
menos que isso
de não ter luz 
nem telefone
de ter que ir lá
pra poder saber das coisas.
da criançada levar cadeira
só pra ver matar borrego 
que domingo ia ser churrasco.
de ver carneiro escapar
por gritar antes da faca.
mas porco não escapava
gritava esperneava berrava
e virava banha e carne
e da cabeça um queijo
que minha vó fazia
e que fui comer de novo
pedindo sem saber
num baguette em Paris
no Café de la Paix
a fazenda
cheirava a capim a pó a bosta de vaca
tinha um açude com carpas
churrasco de ovelha
se andava a cavalo
até a bunda doer
até não aguentar mais
ser criança da cidade
fora do mundo
da fazenda
que lá nos anos oitenta
Reforma agrária levou
porque o vô já não vivia
e as fazendas
eram duras de cuidar
viraram lembranças
das coisas 
do meu Vô Zeca
que apagou como vela
nos braços da Vó Florzinha
deixando saudade
na gente
do homem que tinha fazendas.

Renato De Mattos Motta




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